Walter Benjamin aponta em ensaio primoroso um divisor de águas na produção artística Ocidental, antes dos meios de reprodução técnica e depois deles. Segundo o pensador da Escola de Frankfurt, a arte antes da reprodutibilidade técnica possuía uma aura que estava associada à sua autenticidade, beleza, unicidade e à dificuldade de exposição/visitação. Restrita ao acesso presencial, o público só poderia fruir das obras de arte se se deslocasse até o seu local de exposição. Essa dificuldade de acesso e a unicidade de cada obra conferia-lhes uma aura.
A arte moderna e a contemporânea emergem em plena ebulição da reprodutibilidade, quando a discussão sobre a originalidade da peça, enquanto obra autentica, única e de difícil acesso é quase incipiente. Porém em arte tudo é transformável, transmutável e tende a fugir das regras ditadas pelo consumo/capitalismo. Assim são os livros de artista, criado por William Blake, eles surgem como suporte para obra de arte no século XVIII e ganham novo relevo com as vanguardas no século XX nas mãos de artistas como Sonia Delaunay, Marinetti e Marcel Duchamp, nessa ocasião a acessibilidade dava o tom para a sua criação.
Porém, ao folhear os livros de artista criados pela artista plástica Sueli Ferrer surge o inusitado, uma obra capaz de conjugar a aura e a contemporaneidade em um mesmo artefato, palavra que conota toda a riqueza dos livros de Sueli S Ferrer. Artefato é um objeto criado, manufaturado, uma obra de engenho que traz informações sobre a cultura do seu criador e usuários, e acrescentaria, no caso dos livros da artista em questão, mesclam a arte e os fatos vividos pela artista e pelos que os folheiam. Obra aberta, profundamente contemporânea, criada a partir de “restos” de papéis amarelecidos, guardados por longo tempo, de texturas diversas e que em sua grande maioria desconhecem texto escrito ou desenhos, são páginas em branco, nas quais a rasura do tempo, às vezes sob a forma de uma traça, de um desfazer-se, impõe rupturas no contínuo. De quando em quando as cores de vermelhos velhos e azuis descorados rompem a sinestesia tátil das texturas e do branco resignificando-as.
Frágeis, delicadas, as páginas compõem espaços abertos para a abstração, convidando aqueles que as folheiam a criar junto com a artista, a imprimirem neles suas vidas e sentimentos. Sutis, exigem sensibilidade para compreender a alternância das lembranças ali impressas em tons pálidos, por vezes de toque áspero contrastando com o macio e o sedoso.
Os livros de artista de Sueli S Ferrer reivindicam o olhar atento para o surgimento inesperado de uma única palavra “perdida” entre texturas e, por ali estar impressa ou manuscrita, revolucionar com seus múltiplos sentidos o caminho percorrido. Ruptura na continuidade de um tempo/vida marcado pelo mergulho em si e na obra.
Como em todo livro, os de Sueli S Ferrer revelam as propostas estéticas da artista: o gosto pelo detalhe, pelo delicado, pelo cotidiano que passa aos olhos leigos despercebidos, o apreço pelas formas limpas, minimalistas, de grande harmonia e equilíbrio que se intensificam na escolha das cores ou ainda na profusão de elementos e colagens que explodem em vida, como em sua produção carinhosamente denominada de “kitsch”. Além de fazer delicada e emocionante revelação de sua própria vida, seus afetos, suas angústias e desejos. Uma entrega incondicional aos que os manuseiam. Tal qual a vida, os livros existem e se consomem na troca com o outro.
Os livros da artista exigem o toque, impedindo a reprodução em massa, isso recupera o hic et nunc, a aura das antigas obras de arte, porém, enquanto obra aberta, a ser composta em comunhão com aquele que o folheia, os livros são profundamente contemporâneos, antitéticos em sua gênese. Em um mundo cada vez mais virtual, os livros revelam preciosidades de um tempo passado, infância, adolescência dos que hoje têm 40, 50, 60 anos ou mais, convidam a uma volta ao calor humano, ao tato, ao cheiro das lembranças marcadas pelo manusear/colecionar papéis, cadernos de costura, anotações, bilhetes, carbonos, correios elegantes, selos, cartas, pétalas de flor, embalagens de bombons, enfim, momentos de vida, ou, como diz a canção...a seda azul do papel que envolve a maçã.