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O Kitsch na 2ª via

Contundência, ironia e humor.

Carlos Rezende

Junho 2002

Uma combinação difícil em um trabalho de arte. O humor no teatro é favorecido pela própria forma dinâmica da encenação. Por exemplo, numa comédia, quando se representa uma passagem engraçada, imediatamente se espera a reação da plateia. Vai se moldando, de certo modo, o discurso e a forma de transmissão da informação em função da reação do público. O ator está diante da plateia.

 

Na pintura ou na escultura o ator não está presente. Seus desejos, sentimentos e ideias estão misturados a outras intenções, materializados naquele pedaço de matéria exposto.

 

As intenções estéticas estão mescladas a um discurso geral da obra, na qual, através da leitura, do vivenciamento, retiramos o que entendemos e deixamos o resto para os críticos.

 

Quanto mais referências temos diante do objeto de arte, maior a certeza de que entenderemos o que o artista quis dizer ou fazer. Mesmo se as intenções da obra ou do artista seja a de apenas deixar as coisas confusas.

 

Na sociedade contemporânea, muito mais do que antes, há a preocupação em se ultrapassar limites. Nascemos condenados a uma disputa incessante pelo primeiro posto, o primeiro mundo, o título da copa do mundo de futebol, o melhor produto pelo melhor preço.

 

À margem dessa situação de excelência virtual, no sentido das virtudes semânticas, uma condição predita no poema de Augusto de Campos (acima), circulamos por uma 2ª via: a vida é kitsch.

 

O conjunto de objetos de Sueli S Ferrer merece a atenção pela propriedade com que combina elementos cuidadosamente escolhidos do nosso cotidiano kitsch e os agrupa em pequenas esculturas-objetos, como nas obras dadaístas ou nos poemas-montagens de Juan Brossa.

 

No mundo dominado pelos encantos postiços, uma terra abandonada pelos deuses (“Périplo, não há...nem sinal de sereias”, Finismundo, Haroldo de Campos), visitar essa exposição, hoje somente em fotografias, todas as obras – menos uma, exposta na coletiva no hall do teatro municipal – foram perdidas, é nos depararmos com a necessidade de refinamento de nossa consciência crítica, alcançado somente através de visitas a boas mostras e participando de discussões sobre a necessidade da arte, como a oferecida recentemente pela Secretaria da Cultura, com a presença do curador da seção brasileira na XXVI Bienal Internacional de São Paulo, Agnaldo Farias.

 

Esse conjunto precioso de esculturas de Sueli S Ferrer foi destruído, nos anos noventa, pelo descaso e ignorância dos cidadãos e das instituições, (i) responsáveis pela preservação do nosso patrimônio de cultura. Na melhor tradição inaugurada pela demolição do teatro municipal, na década de sessenta e ao fechamento da escola de Belas Artes, na mesma época.

 

Ao retirar a formação estética do currículo de segundo grau – pagamos o preço de viver numa cidade cada vez mais horrenda e mecanicista. Eliminamos qualquer possibilidade de se formar e cultivar uma cultura visual. Aqui, onde uma praça pública (?), quando não é cortada ao meio por uma passagem de asfalto, dá lugar a um pátio escaldante e insosso, aos olhos contemplativos de arquitetos, artistas, políticos, que nada fazem além de comentários inofensivos e passageiros, visitar essa mostra seria uma importante forma de exercitar nosso apagado e quase inexistente senso crítico e estético.

 

Ferrer, trabalhando com um repertório reduzido, no amplo terreno da 2ª via, consegue recriar, nesse pequeno agrupamento de objetos, um pequeno panorama de uma época.

 

A crônica de costumes – ao recolher e combinar objetos de uso no nosso dia a dia, traduzindo para a linguagem da arte, elementos de importância antes no discurso religioso, comportamental.

 

O mito, nas suas origens idealizava o extraordinário, transformando em objetos de culto o que antes era habitual, comum. Fatos ou personagens que assumiram um valor diverso do original, assumindo o posto de modelos a se imitar, pontos de referência de comportamento, responsáveis diretos por um provável conforto espiritual, estático, afetivos.

 

No contexto da arte contemporânea, e mais especificamente, o dessa mostra de Ferrer, a manipulação de conceito de mito, depois de redefinido e modificado pelos Mass Media e proposto na apresentação e recombinação nos objetos da exposição, é resultado da ação de uma inteligência e uma intuição específica, refinada. O resultado foi uma mostra contundente, carregada de humor e beleza. Ingredientes indispensáveis de uma arte vigorosa e duradoura.

 

Por ironia, somente para quem soube apreciá-la, no seu curto período de existência.

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